aboreira scriptorium

É pretensão deste espaço, ser um depósito de ideias, tónica de pensamentos do seu autor, sobre a actualidade em geral e com especial incidência em várias Culturas, no Turismo, no Património e na Gastronomia, em Vila Nova de Poiares, na Região das Beiras/ Portugal e no Mundo. Pedro Carvalho Santos, pensou-o ... e o fez ...

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Localização: Vila Nova de Poiares, Coimbra, Portugal

Existo - creio no meu Deus.

segunda-feira, maio 08, 2006

uma das lendas do primeiro rei de portugal

Já muito falamos e escrevemos sobre uma das Lendas mais caracteristicas de Poiares. E não deixou de ser polémico o facto de desde o século XIX defender-se que poderia ser de Poiares, este nosso, ou de outros locais como perto do Porto ou Vila da Feira. Por convicção que temos que tenha sido no espaço hoje de Vila Nova de Poiares, vamos contar a História da Lenda.
Nos séculos seguintes ao reinado do “Conquistador”, inúmeras lendas se contavam por várias terras por onde o conquistador passou! Feitos que enobreciam e vangloriavam o primeiro rei deste recém país “à beira mar plantado”!
Terá sido no período da edificação da Nação que foi surgindo o nome das “Terras de Poiares” – «Vimieira a par de Poiares». Nome que não sabemos quando se pronuncia pela primeira vez, mas que se relaciona de uma forma “apaixonada” e lendária com D. Afonso Henriques, através de uma lenda que como todas as lendas valem pelo que são, lendas.
Ao facto referem-se diversas Crónicas antigas, nomeadamente, as do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, as de Duarte Galvão, de Frei António Brandão ou de Nunes de Leão. Também relatos de historiadores e literatos do século XIX, como Alexandre Herculano ou Aquilino Ribeiro, incluíram nos seus trabalhos a Lenda referente a D. Afonso Henriques.
Apresentamos assim duas das versões da Lenda de D. Afonso Henriques, uma mais originária de 1600, outra do século XIX, ambas com adaptações realizadas por nós.


Extracto retirado e adaptado por nós do livro de Nunes de Leão do ano 1600, que se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo:

« ... prosseguindo mais a história diz, que queixando-se a Rainha ao Santo Padre, da Prisão em que seu filho a tinha metido (o que ele muito estranhou), mandou o Santo Padre a Portugal sobre dito ao Bispo de Coimbra, que na corte de Roma andava, com mandado para que El Rei soltasse logo sua mãe. E não querendo que fosse interdito todo o reino. E o Bispo assim cumpriu. E que dado as cartas a El Rei lhe disse que tinha o Papa de fazer com ele por ter presa a sua mãe que sofre certo que nem por mandato do Papa, nem outro algum a havia de soltar.
E o Bispo vendo que não podia levar a melhor resolveu excomungar El Rei e todo o Reino e se fora. Sabendo El Rei que estava excomungado ele e todo o reino, foi-se aos seus cónegos e mandando os entrar em cabido, que de entre eles elegessem um Bispo. E eles disseram-lhe que Bispo tinham, que não lhe podiam dar outro, e El Rei disse-lhes que nunca em seus dias esse seria Bispo e logo lançara os cónegos todos pela porta fora dizendo que ele buscaria um Bispo e vindo pelo claustro viu um clérigo negro e perguntou-lhe como se chamava, a que o negro lhe dissera, Martinho e perguntando-lhe pelo nome de seu pai dissera que era Soleima. Perguntando-lhe se era bom clérigo, o negro disse-lhe que era um dos melhores de Hespanha e El Rei disse-lhe: Tu serás Bispo Dom Soleima e ordeno logo que me digas missa. Disse-lhe o negro, que ele não era ordenado como Bispo, para lha dizer. E que El Rei lhe dissera que ele o ordenava como Bispo que lha podia dizer e se aparelha-se como logo lha dissesse e não que lhe cortaria a cabeça com aquela espada ao que o clérigo se retirara para lhe dizer a missa solenemente como Bispo e lha disse.
Diz mais essa história contra El Rei Dom Afonso Henriques que sabendo-se em Roma o que ele passara com o Bispo de Coimbra e que não quisera soltar a mãe, nem obedecera aos mandamentos do Papa e como elegera Bispo e o ordenara de sua autoridade julgarão El Rei por herege e ordenarão de lhe mandar um Cardeal que lhe ensinasse a fé e o emendasse de seus erros. E que vindo o Cardeal pelas cortes dos Reis fora recebido com muita honra. E sendo perto de Coimbra fora dito a El Rei per seus fidalgos: Senhor, ali vem um Cardeal de Roma a vós da parte do Papa, por estar descontente de vos, por o Bispo que fizeste. Disse El Rei que ainda se não arrependia e eles lhe lembrarão que todos Reis por cujas terras viera lhe fizeram muitas honras e cometerão a lhe beijar a mão. Ao que El Rei disse: Não sei eu Cardeal nem Papa que a Coimbra viesse, que estendesse a mão para eu lha beijar em minha casa, que eu lhe não cotarei o braço pelo cotovelo com esta espada. E que sabendo o Cardeal aquelas palavras em chegando a Coimbra tomou grande receio e El Rei não saio fora a recebe-lo: o que o Cardeal logo teue a mão final. E portanto como chegou logo se fora a alcançar onde El Rei pousava e que ai o recebera El Rei bem dizendo-lhe: Cardeal a que viestes a esta terra ... ou que riquezas me trazeis de Roma para estas guerras que tão a medo ... faço de dia e de noite contra os Mouros ... se por ventura trazeis alguma coisa que me deis, dai-me e se não a trazeis tornai-vos vosso caminho e o Cardeal lhe disse: Senhor eu sou vindo a vos da parte do Santo Padre para vos ensinardes a fé de Cristo que esta informado que a não sabeis. E que El Rei respondendo: Cerro assim temos nos que nos livros de fé como vos lá em Roma e por tanto bem sabemos os artigos da Santa fé. E todos lhe referiu por sua ordem e que aquela fé tinha e teria firmemente também como em Roma. Pelo que não tinha necessidade dele nem de sua doutrina, mas que lhe dariam então o que houvesse mister e que ou outro dia falariam.
Prosseguindo um pouco mais diz a historiografia que indo-se o Cardeal para a pousada mandou por logo ceada as bestas, e tanto que foi a meia noite mandou chamar todos os clérigos da cidade e excomungou a El Rei e a Cidade e ao Reino todo e cavalgou e foi-se de maneira que ante manhã tinha andado duas léguas. E que levantando-se El Rei pela manhã, dissera a seus fidalgos que com eles queria ir ver o Cardeal. E que dizendo lhe eles que ante manha se partira, deixando a ele e a todo reino excomungado, com grande indignação mandou a pressa selar um cavalo e cingiu sua espada, e foi tão rápido que alcançou ao Cardeal em um lugar que chamam a Vimieira a par de Poiares. E como chegou a ele lhe lançou uma mão ao cabeção e com outra tirou a espada e alçando-a disse: Da cá a cabeça traidor, querendo-lha cortar. Mas dizendo-lhe os fidalgos que chegarão com ele, que tal não fizesse, que o teriam em Roma por herege, El Rei lhes dissera: Vos outros lhe dais a cabeça toda vos ficara cá e que o Cardeal lhe pedira não lhe fizesse mal, que tudo o que aqui se faria de boa mente. E que ele Rei lhe dissera que o que queria era, que descomungasse quanto excomungara e que não levasse ouro nem prata, nem bestas, somente as que lhe bastassem e que lhe mandasse sua letra de Roma que nunca Portugal seria excomungado, que ele ganhara com sua espada. E que em vez disso deixasse um sobrinho que consigo trazia até que a letra viesse e que até quatro meses lha não mandasse que lhe cortaria a cabeça a seu sobrinho. O Cardeal disse que lhe aprazia. E ali ficou de o fazer. E que então lhe tomara El Rei quanta prata e ouro trazia e das bestas que lhe achou lhe deixou mais que três e lhe disse: Hora vos Cardeal ide vosso caminho, que esse e o serviço que vos quero. E sito acabado antes que o Cardeal se partisse El Rei se despiu todo, e lhe mostrou muitos sinais de feridas, que tinha pelo corpo e disse: Como eu sou herege se mostra por esses sinais de que houve estas em tal peleja e estas em tal cidade ou vila que tomei e todas por serviço de Deus contra os inimigos de nossa fé. E para levar isto adiante vos tomo este ouro e prata, de que estou muito em falta. O Cardeal diz que se tornar a Coimbra. E após ele diz que mandou El rei a Roma um seu escudeiro encoberto para dela lhe mandar dizer o que se dizia dele sobre o cardeal. O qual chegado primeiro que o Cardeal, escreveu a El Rei como contara o Bispo ao Papa tudo como passara, e como lhe ficara de lhe mandar a letra e o Papa se ano jara com ele dizendo-lhe que como prometia o que só podia fazer a fé Apostólica e que o Cardeal lhe dissera: Santo Padre, eu não digo letra, mas sim a cadeira de São Pedro fora minha lha deixara e dera de boa mente por escapar de suas mãos que se vos viseis sobre vos um cavaleiro tão forte e espantoso como aquele Rei e vos tivera a mão no cabeção e a outra alçada para vos cortar a cabeça, e seu cavalo não menos alvoraçado hora com uma mão, hora com outra cavando a terra, parece parecendo que vos fazia a cova, vos dareis a letra e o Papado. Por tanto me não deveis de culpar, então lhe outorgou o Papa a letra da maneira que o Cardeal quis e que o Cardeal lha mandou antes dos quatro meses. E El rei lhe mandou seu sobrinho honradamente como cumpria, dando-lhe muito do seu. E o cardeal foi da i em diante tão seu amigo, que todas as cousas lhe fazia na Corte de Roma, e acabava com o Papa per que El rei sempre em seu Reino fez os arcebispos e Bispos como quis. Estas são as histórias que entre a gente vulgar andarão naquele tempo, que todas dependem de uma que é o casamento da Rainha, e sua prisão, ... »[1]

Versão extraída da obra de Aquilino Ribeiro do século XIX, retirado de um apontamento histórico da autoria do Dr. Antonino Henriques. Adaptação nossa.


No Séc. XII o Papa Honório II, enviou um Cardeal – Legado devido à queixa que D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques, lhe fizera depois da batalha de São Mamede informando-o de que seu filho a mantinha presa, segundo um antigo costume.

Em Coimbra terá o rei questionado este mensageiro papal!
«- Então a que vindes, cardeal amigo? Trazeis-me dinheiro para custear a guerra que, noite e dia, ando há tantos anos a fazer aos mouros? Se trazeis, desatai a bolsa, se não, tratai de rodar e volver para onde viestes.
- Venho do mando do Santo Padre ensinar-vos a fé de Cristo ...
- Ensinar-me a mim a fé de Cristo ... ?!
- Então o credo que cá se usa não é o mesmo que em Roma ? Ouvide lá...
E D. Afonso Henriques, recitou-lhe tim-tim por tim-tim o símbolo dos apóstolos tal como vigorava por toda a cristandade.
- Hem ? Já sabeis que não estou em falso. Mas, bem, bem, ide repousar, que se faz tarde, e amanhã falaremos.
Recolhendo o cardeal à pousada, in-contenti mandou os arreios deitar ração de cevada às mulas e aprestar para partir. Meia noite dada, acudiram os clérigos à sua convocação, ensonados uns, cara de caso outros. E, perante todos eles, boquiabertos, excomungou a cidade e o reino. Isto feito, cavalgou, e ainda a manhã não fora, tinha botado mais de duas léguas de Coimbra.
Quando, ao levantar, D. Afonso Henriques o soube, pediu que lhe trouxessem o cavalo mais veloz. Foi-lhe nascer o sol, levado num furioso galope a corta mato, perto de Poiares. Um pouco mais adiante avistou o cardeal legado que choutava com a comitiva. E, correndo para ele, sem tirte nem guarte, deitou-lhe a mão esquerda ao cabeção, ao passo que com a direita desembainhava a espada:
- Espera traidor, que é hoje o teu último dia ! ...
Interpuseram-se os cavaleiros que o tinham seguido à carga cerrada :
- Não o mateis, senhor, que então é que vos tomam por herege verdadeiro !
- Seja, não o mato, mas há-de desfazer e já tudo quanto fez ...
- Senhor – gemeu o cardeal – tudo o que vós quiserdes eu o farei de boamente.
- Então desexcomungai quanto excomungastes ...
- Senhor, eu o desexcomungo em nome do Padre, do Filho e do Espirito Santo.
- Prantai para fora dos alforges quanto levais ... Prata, oiro, e mais coisas de valia ...
Os arrieiros esvaziaram os alforges que, de facto, iam a abarrotar de preciosidades.
- Deixai também as bestas, que preciso delas para a guerra. Bastam-vos três ...
Resignou-se o legado a cumprir mais esta condição, julgando que era a derradeira.
- Tomai agora o compromisso de que, mal chegardes a Roma, me enviareis um breve de Sua Santidade, breve em que se declare com todos os ff e rr que nunca mais em tempo algum eu e Portucal, que ganhei com esta espada, serão excomungados ...
Assumiu o cardeal, e Afonso Henriques fez saber qual a condição final, aceite aliás submissamente como as demais. O sobrinho do cardeal ficava em refém até chegar o breve de Roma. Se no prazo de quatro meses não viesse, então não havia nada a fazer, e cortava-lhe a cabeça.
El-Rei, depois, despiu o pelote[2], desafivelou a loriga[3] perante os olhos estupefactos do legado e dos cavaleiros. E mostrando o peito lanzudo coberto de cicatrizes e gilvazes, em voz cava, martelada, proferiu:
- Cardeal, fazei-me o favor de dizer a Sua Santidade que vos pus bem à vista a cartilha das minhas heresias ...
E um por um foi apontando os golpes e enunciando as cidades e vilas e lugares de peleja onde os tinha apanhado. E em voz patética concluiu:
- Todos estes lanhos e talhadas recebi na batalha contra os inimigos da nossa Santa Fé. Dizei ao Papa.
Tendo chegado a Roma, quis desautorizá-lo o Sumo Pontífice com recusar-lhe a Letra prometida a par das infalíveis censuras. Respondeu-lhe o Cardeal – Legado.
- Senhor Santo Padre, se vós vos víreis, nos assados em que eu me vi, um homenzarrão daqueles a agarrar-vos a cabeça com a mão esquerda, a espada na mão direita, o cavalo, grande como uma torre, a escavar a terra parecendo que vos estava a abrir a cova, ah, não daríeis apenas uma bula, mas a própria cadeira de São Pedro ... “.


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[1] Lenda do Livro de Duarte de Armas, com adaptação do autor. (Primeira Parte das Crónicas dos Reis de Portugal, Reformadas pelo Licenciado Duarte Nunes Leão, Desembargador da Casa da Suplicação, por mandato del Rei D. Filipe I de Portugal, da gloriosa memória. Lisboa, 1600)
[2] Tipo de vestuário com abas grandes.
[3] Tipo de saia de malha, geralmente usado por cavaleiros guerreiros, coberto de lâminas, tipo de escamas em ferro.