aboreira scriptorium

É pretensão deste espaço, ser um depósito de ideias, tónica de pensamentos do seu autor, sobre a actualidade em geral e com especial incidência em várias Culturas, no Turismo, no Património e na Gastronomia, em Vila Nova de Poiares, na Região das Beiras/ Portugal e no Mundo. Pedro Carvalho Santos, pensou-o ... e o fez ...

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Existo - creio no meu Deus.

quinta-feira, janeiro 31, 2008

a casa do meu tio avô Fernando Dias Ferreira


Matança do Porco – uma história da minha infância ...

Cada testemunho, vale o que vale! Os mais velhos, terão muitos “contos” sobre este tema, os mais novos como eu terão menos, mas das várias Regiões do nosso país há sempre História para contar, uma tradição, que também ela é Património de todos, de uma Cultural Nacional, chamada “a Matança do Porco”! Esta prática, de verdadeiro sustento de grande parte do nosso país durante séculos, teve também grande expressão no meu concelho. Trago até vós um pedaço de História de criança, e esta, ... só poderá ter alguma importância por ser “pessoal e verdadeira”!
Lembro-me do dia de frio que estava. Teria 7 ou 8 anos e seria final de Outono, ou início de Inverno. Os meus pais foram a casa do meu tio (avô) Fernando Dias Fereira (descendente do Grande José Dias Ferreira), que vivia no lugar dos Cabeçinhos, paredes meias com a Risca Silva. Esta parte da casa centenária, conservava ainda tudo o que pertencera aos meus bisavós paternos.
Entrei, como sempre por uma porta que atravessava a grande adega. Aí estavam grandes pipas de vinho, tanques, espremedor fixo do cadaço e outras alfaias do “vinho”. Recordo com muita saudade a sineta que ficava a tocar quando eu entrava, a correr já ia quase a sair da adega e a avistar o pátio, e esta ficando a tilintar ainda se ouvia. Quando entrei no grande pátio, estava uma verdadeira azáfama no ar. A minha tia Helena estava envolta na “cozinha dos fornos”, lugar que me deixa enorme saudade. Existiam aqui três fornos: um de meio alqueire, um de alqueire e meio e outro de mais de dois alqueires! Verdadeiros fornos de lenha onde apreendi desde novo a ver fazer a Chanfana, “Ex-libris da Gastronomia deste concelho. Toda esta “Casa dos Fornos” era, também, um fumeiro, por isso estava sempre negra do fumo. Inúmeras canas e paus estavam por cimo dos fornos presos por arames e com testos de tachos ou panelas para que nenhum rato mais experiente descesse até aos enchidos. A minha saudosa Tia Adelaide costumava estar a migar couves para os animais, ao que juntava farelo/farinha e água, ao lado estavam baldes de lavagem com comida para os porcos, como restos de abóboras, de couves e outras hortaliças. Mas naquele dia tinha à sua frente um enorme alguidar de barro onde já estavam pedaços de carne temperados e com a ajuda de um pequeno funil de metal (enchideira), enfiava o enchido na tripa do suíno. Chouriços, chouriças, enchidos de gordura, chouriços de farinha (carne gorda e farinha) para temperar a comida, salpicões e outros era o que saía para o alto do fumeiro. Depois era o aproveitamento do fumo dos fornos e quando não estavam a funcionar, viam-se as fogueiras no chão para fumegar os enchidos e para cozer a comida dos animais, numa enorme panela de três pés. Mas se isto acontecia porque na semana anterior tinha havido “matança”, e as carnes para enchidos tinham cumprido os 4/5 dias de tempo em vinho, alho, sal e outros temperos, os salpicões tinham os 8 dias da tempera.
No enorme pátio via-se novamente a grande tábua (uma grande prancha de madeira) que serviu para colocar os porcos onde estes tinham sido chamuscados com carqueja, lavado e raspado com um caco de telha caneleira. Vários homens já tinham “segurado os bichos”, já tinha lhe sido atribuído o golpe fatal e num tabuleiro de madeira ou alguidar as tripas tinham sido encaminhadas para o ribeiro. Depois penduravam os animais em ferros (“chambaril” – antes de madeira, naquele tempo já de ferro) onde os deixavam de pernas abertas a escorrer de um dia para o outro.
Um homem experiente “do assunto” começava a “desmanchar” o dito, numa banca que tinha um lençol branco e “ia estendendo a carne”. Numa das cozinhas de apoio tinha-se cozido parte do sangue com sal (outra parte era para as murçelas) e ainda me lembro dos odores e cheiros desse pitéu que todos comiam com o pão de cabeça ou broa, acabada de fazer, sendo a primeira refeição que se dava “ao pessoal” em cima do suíno. Cheiro ainda hoje o sabor a alho, azeite, vinagre e pimenta que andavam pelo ar.
Febras e “coiratos” estavam nas brasas, crepitando ao sabor do sal. Estes “coitados” encarquilhavam-se todos com o calor da fogueira. O sabor era divinal! A salgadeira estava pronta para receber os presuntos e carnes para a salga, outra parte estava já destinada para o fumeiro. As minhas tias, a minha mãe e as empregadas preparavam o almoço, onde todos à volta da enorme mesa saboreavam pedaços do porco (barrigueira, fígado, sangue), os Torresmos, era a “Torresmada” como diziam e que em outras zonas das Beiras, chamam também Sarrabulho!
Hoje, quando tudo parece que se compra tão facilmente, recordo esses tempos, julgo que o que se saboreava era verdadeiramente e apenas o fruto do trabalho destas gentes, gentes de Vila Nova de Poiares, gentes das Beiras!

Pedro Santos