aboreira scriptorium

É pretensão deste espaço, ser um depósito de ideias, tónica de pensamentos do seu autor, sobre a actualidade em geral e com especial incidência em várias Culturas, no Turismo, no Património e na Gastronomia, em Vila Nova de Poiares, na Região das Beiras/ Portugal e no Mundo. Pedro Carvalho Santos, pensou-o ... e o fez ...

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Localização: Vila Nova de Poiares, Coimbra, Portugal

Existo - creio no meu Deus.

segunda-feira, maio 15, 2006

uma questão de muito bom vinho beirão

No século XIX o concelho de Santo André de Poiares viu produtores de vinho serem medalhados em Filadélfia nos Estados Unidos e no Brasil. O concelho tinha produtores de bom vinho à semelhança dos concelhos vizinhos: Arganil, (com uma zona demarcada da Região do Dão), Gois (concelho limítrofe), Lousã (caso ainda hoje das excelentes vinhas propriedade do senhor Conde de Foz de Arouçe), Miranda do Corvo (Lamas por exemplo), Penacova (nas encostas), assim como nos arredores da Cidade de Coimbra (zona de Ceira por exemplo) limítrofe do concelho de Poiares. Também no lado litoral a zona de Cantanhede e Mealhada (Bairrada) teve sempre tradição vinícola tanto no passado como no presente.
Não é difícil de compreender porque durante tantas décadas muitos destes concelhos incluindo o de Poiares se tenha perdido essa qualidade que outrora estes vinhedos possuíam.
Só aproximadamente nos últimos 15 anos se reiniciou o investimento nas vinhas ao centro de Portugal, nomeadamente na Região do Dão. O leitor lembrará da “pujança” que houve das marcas Alentejanas há alguns anos, sendo que do Porto apenas se mencionava o verdadeiro Vinho do Porto, não se mencionando maduros e brancos.
Não quer dizer no entanto que os mais entendidos não consumissem vinhos de todas as regiões onde os padrões de qualidade nunca se perderam, nomeadamente das produções privadas e de alta qualidade. Falamos no entanto é do vinho corrente que felizmente hoje é de muito boa qualidade. As vinhas no concelho de Poiares, sofreram no final do século XIX e inicio do século XX as pragas da vinha, e em grande força a praga chamada Filoxera. Desde esse período plantaram-se vinhas do chamado vinho Americano, Morangueiro, Directo, enfim vinhas que em nada tinham de forte tradição e qualidade, mas que segundo os lavradores se “aguentava” bem! Iniciou-se aí a questão do grau do vinho, o açúcar, os sacos de granulado que tão bem pude observar desde “miúdo”!
Devido à profissão que exerço pude comprovar em diversas fontes a questão das pragas do vinho, os apelos dos lavradores que tinham vinhas, os remédios que se davam para tratar as vinhas, os utensílios de tratamento assim como apoios do próprio Governo de então. A Casa dos Godinhos, as Vinhas da Quinta do Torrel, a Casa Ferrão da Vendinha, a Quinta da Beócia, a Casa dos Moinhos, enfim um sem número de lavradores abastados que se viam aflitos com as suas vinhas “doentes”! Certo será que outras casas de Lavradores Abastados/ Casas Burguesas, de outros concelhos limítrofes e das regiões das Beiras e Douro se debateram com o mesmo problema. Este produto da terra, “filho de Baco”, era o sustento de alguns pobres, outros remediados, em que este/ vinho servia de sustento e garantia de moeda de troca a outros géneros necessários nestes tempos de pobreza.
Parece-nos assim que deve ter contribuído para que a qualidade de vinho nesta região Beirã tivesse piorado. Parece-nos mesmo que pode ter dado um “fomento” à falta de qualidade dos vinhos nesta zona passando a serem afirmados de: sem grau, sem qualidade, de água pé (mesmo fora da época/água pé durante todo o ano), e de morangueiro! É depreciativo e foi esse nome, de Morangueiro! Vinho Morangueiro! - Vem beber a minha casa um Morangueiro, ... olha que não faz mal, ... é fraquito!
É nossa ideia que vinho que “leva” químicos para “o segurar”! Vinho que não leva as doses certas, “carregando”, exagerando o lavrador para ter a certeza que não se estraga, ... depois, ... depois fica o trago, o gosto característico, ... carrascão também concerteza!
Julgo que terá sido também com a carestia provocado pela 1.ª Republica, 1.ª Grande Guerra e 2.ª Grande Guerra, inicio do Estado Novo e consequentemente nível de pobreza que se terá difundido determinado prato gastronómico como a Chanfana por exemplo! Não, que não se realiza-se à muitos anos, séculos mesmo, mas terá sido com estas necessidades, fome, ... pois de certeza, que se terá com aguça e engenho difundido este prato da Chanfana. Vinho de fraca qualidade, cabra sem préstimo, aproveitamento do resto do calor do forno, onde se cozeu a “broa” ou o Pão de Cabeça!
É lógico que hoje há um apuramento, e mesmo nesta altura quem tinha possibilidades económicas poderia realizar esta comida mais enriquecida, no entanto a massa comum do povo fazia-o por necessidade e assim sendo seria um aproveitamento alimentar, como um subproduto!
Hoje o vinho que consumimos na Beira é genericamente de boa qualidade, existem vinhos superiores, reservas, que se encontram nas melhores mesas nacionais e estrangeiras e a promoção dos vinhos do Dão e Bairrada tem dado “cartas” onde quer que chegue!
Também no concelho de Vila Nova de Poiares, temos tido produtores que tem apostado em castas de qualidade, obtendo-se vinhos no concelho na ordem dos 14 e 15 graus se não mais! Temos conhecimento da implementação de castas como a Touriga, antiga casta que Poiares possuía (antes da doença da Filoxera), assim como a casta Jean, e outras inclusive de zonas mais longínquas como Colares.
A Chanfana essa em Poiares regra geral é confeccionada com vinho de excelente qualidade muitas das vezes vinho “encorpado” a que não se olha ao preço.

Pedro Santos

segunda-feira, maio 08, 2006

pedaços de histórias das minhas raízes – I

Se houve zona no concelho de Vila Nova de Poiares onde existiram inúmeros negociantes de gado foi na zona da Risca Silva! Paredes meias com a Vila Sede de Concelho, o lugar da Risca Silva possuí ainda hoje alguns negociantes de gado e de comercio ligado a papel, sucatas, ferro velho, peças de reutilização, etc.
Marcada fortemente por uma estrada principal onde o comercio imperava, possuía inclusive algumas tabernas e lojas em particular no piso térreo dos edifícios, onde ainda se verifica em termos arquitectónicos, a existência de inúmeras portas comerciais. Uma delas foi propriedade do meu tio Antonino e ficava mesmo em frente à Quinta Nova.
Neste lugar existiram também, casas de lavoura de grande importância comercial, aí albergavam inúmeros animais em estábulos, como bois por exemplo, onde se pode destacar a família Mendonça que negociava desde o século XIX, “fazendo” feiras por todo o Distrito de Coimbra, realizando negócios de grande monta. Alguns destes proprietários, possuíam também família e negócios fora do concelho, passando menos tempo nestas casas dividindo-o também por outros afazeres, caso dos que tinham comercio em Coimbra, Porto e Lisboa.
Nesta terra da Risca Silva moraram os meus avós maternos, onde possuíam uma casa no “fundo da rua”! Era assim que o meu avô José Adelino gostava de apelida-la. Viveu a minha tia avó, Alice, assim como um tio avô, um tal Augusto “vinte ovelhas” que não tive oportunidade de conhecer. Este vivia na casa que era dos meus bisavós (que ainda existe), esta família era apelidada de “Bragueses”! Ainda hoje tenho primos desta família neste lugar. Por referencia oral (contos da minha mãe), sei que este meu tio avô calcorreava as Beiras, comprando e vendendo, ... mas não só este familiar era negociante de gado, porque outros haviam nesta família que negociavam até para áreas mais longínquas como o meu tio avô que casou com uma sobrinha do grande Escritor Almeida Garrett, isto porque negociava na cidade do Porto e ai se enamorou!
Na Risca Silva também viveram antepassados da família do meu pai. A família dos “Fogueteiros”! O meu tio bisavô Antonino, irmão do meu bisavô Alberto Carvalho dos Santos, que durante muitos anos esteve a trabalhar em Lisboa. Este regressou quando o irmão teve um acidente com a “mistura das polvoras (massas)” e faleceu.
Certa vez que estive a realizar um trabalho na Biblioteca da Vila da Lousã, pude observar uma notícia onde se falava desse acidente, mencionando o seu nome e profissão. Deste meu antepassado directo, meu bisavô, ainda vive com a graça de Deus uma filha que vai no caminho dos 100 anos, a minha tia Adelaide que mora um pouco mais acima deste lugar, na Segundeira.
Grande parte da minha família paterna encontrava-se ligada ao lugar da Risca Silva, Cabecinhos e Segundeira.
A casa do meu bisavô Alberto Carvalho dos Santos era no lugar dos Cabecinhos, lugar junto à Risca Silva. Ainda tive a oportunidade durante anos em poder visitar essa casa de família que muitas recordações me deixa. Característica das Beiras, de um só piso, com um enorme pátio interior onde tudo se realizava, numa panóplia de cores, lá pude observar como era a matança do porco, não como recriação cultural, mas sim como era efectivamente. Nessa casa, propriedade então dos meus tios avós, Fernando Dias e Helena Santos, pude observar durante anos o que hoje é comentado como característico beirão. O meu tio estava vezes sem conta sentado numa arca, numa marquise de madeira. O pão, as chouriças e chouriços, a carne assada, chanfana concerteza e tantos outros saberes vinham no ar e parece que ainda hoje os sinto no ar!
Lembro-me de uma gamela cheia de “broa” abafada por cobertores que se encontrava num quarto pequenito em cima de uma cama tendo este quarto uma clarabóia no tecto. Esta divisão dava para uma sala enorme onde se encontrava a mesa que albergava os 13 filhos. Aqui estava um quadro com uma foto de família onde estavam os meus bisavós com todos os filhos incluindo o meu avô Adelino.
Mas o que mais me fica na memória é a casa do forno. Era uma divisão especial onde existiam vários fornos tradicionais, eles próprios de vários tamanhos. Por cima destes estavam inúmeros paus sustentados por ganchos com um testo de alumínio por cima! Era o fumeiro. Recordo vezes que as minhas tias, Helena e Adelaide estavam junto com a empregada a encher a tripa natural com carne de porco temperada de onde começavam a ter forma os enchidos.
Junto à estrada principal tinha sido construída pelos meus tios avós uma casa característica dos anos ’60, estilo Estado Novo. No piso inferior possuía uma grande adega, com tanque, esmagador fixo, e dezenas de pipas e pipos de vários tamanhos. Esta casa ainda existe, desconhecendo no entanto se essa adega mantém as mesmas características.
Ai assisti desde muito novo à conhecida “matança do porco” como já referi, os utensílios, a “carqueja”, o sangue cozido, os “coiratos” assados! Ai assisti a uma quantidade de História sem que ainda percebe-se bem o que era de importante puder observar ao vivo essas mesmas histórias!
Não será possível nunca transmitir o que sinto quando lembro o “cheiro” da massa dos folares! Não será possível transmitir a lembrança da visita do “Senhor Padre”, dos senhores da Filarmónica que visitavam o meu tio! Das merendas com uma suculenta carne cozida! De um fogão de ferro que estava sempre a “criar” um novo sabor!
As histórias são muitas, e algumas perderam-se possivelmente no tempo! Mas algumas ficaram, ... deixem-me tentar contar uma ...
... certo dia que não sei precisar, miúdo claro está, entrei a correr na adega da casa do meu tio Fernando nos Cabecinhos, deixando bater com força a porta de madeira, ... e um sino (campainha) que se encontrava atrás desta ficou a telintar por segundos! Quando deixei de ouvir, já tinha subido e descido os degraus que davam acesso ao pátio e à casa do forno! Entrei, ... a minha tia Adelaide estava a “migar” couves numa tábua “talhada” de cortes, esta de tantos golpes quantos os pitos levaram os longo do tempo, transformando-se em galos no forno!
O meu tio Fernando estava sentado em cima de uma arca de madeira. Esta arca estava numa marquise de vidros pequeninos que reunia todas as divisões e dava acesso à sala grande.
A minha tia Helena fazia “filhoses” no fogão de gás, e a garrafa de vinho encontrava-se já na sala anexa onde se ia merendar.
O meu pai que vinha atrás de mim tinha chegado entretanto!
Não me consigo lembrar da conversa que o meu pai e o meu tio estavam a ter! Possivelmente falavam do tractor, da carrinha que não pegava, de alguma maquina que era preciso arranjar! Não sei, não me lembro! No entanto a conversa que ouvi a seguir ficou-me gravada até ao presente! Só passados muitos anos e já na Faculdade relacionei e percebi o que na realidade se estava a falar naquele dia.
- ... então tio não fique assim! (o meu pai para o meu tio por ele estar a “debitar” algumas lagrimas pelas faces)
- Beto (diminutivo de Alberto), ... quando me falam dele fico sempre assim!
- Então tio, vá lá, ... vá lá, ...
- Aproximei-me e perguntei então, tio o que foi ?
- O meu pai foi explicando que era, ... que foi um familiar que o tio teve, um homem importante, ... muito importante!
- Quem foi perguntei eu?
- Um grande Republicano, muito amigo de Poiares, que morava em Arganil!
Olhava para o meu tio e não percebia muito bem o que se estava a passar.
- Quando me lembro do que ele foi, ... só me apetece chorar! (dizia o meu tio deitando uma lagrima e esfregando a mão no rosto!)
...
Passados alguns anos numa aula de História na Faculdade de Letras o meu Professor Amadeu Carvalho Homem ao dar o Século XIX e o Movimento Republicano em Portugal, abordou Arganil, ... Pombeiro da Beira, e o nome de José Dias Ferreira!
Nesse instante, toda a conversa tida à mais de 20 anos em casa do meu tio Fernando Dias, veio-me à memória!
O homem de quem se falava naquela tarde, era o homem que mais tarde eu viria a comentar várias vezes na história local de Poiares, o homem que foi Ministro do Reino, que se vestiu de pastor e intercedeu em 1866 quando o concelho de Santo André de Poyares foi extinto! Homem ligado a Poiares, às Beiras e ao nosso país, ... um beirão de gema!

Pedro Santos

carros de bois – passado recente


É um património cada vez mais raro e difícil de encontrar nas Beiras! Há algum tempo por uma questão Etnográfica tentamos com alguns conhecimentos que temos encontrar algum carro de bois de junta, ou seja de uma parelha de bois. Ficamos admirado com as dificuldades encontradas. É lógico que acreditamos que existam em muitas casas abandonadas e em inúmeros palheiros alguns destes exemplares, no entanto não temos duvida que daqui a alguns anos já não existiram exemplares.
Memórias vivas dum passado recente, este tipo de atrelagem ficou em desuso na zona das Beiras à cerca de 30 / 40 anos (conforme mais rural ou mais urbano), sendo no entanto que por vezes e em algumas aldeias do interior ainda os encontramos.
Dentro das actividades que vamos realizando, tivemos a oportunidade há cerca de 2 anos de ver um carro de um boi (com varais) no centro da cidade de Bordéus com uma grande pipa em cima, dando um aspecto fabuloso a essa recriação, encenando um passado que os mais novos muito apreciam porque lhes fala dum tempo que não o viveram e os mais velhos recordam!
Durante algum tempo, meses mesmo, deslocamo-nos a diversos concelhos e aldeias da Beira, colocamos em campo algumas pessoas que negociavam no terreno em ferro velho, velharias e outros e concluímos passado algum tempo a dificuldade que era encontrar esse tipo de veículo. Parecia que o gosto que queria-mos ter de possuir um carro de Junta de Bois mais característico desta zona das Beiras, era impensável. Para os concelhos de Sernancelhe, Terras do Demo do Aquilino, para Vila Nova de Paiva, Arganil, Gois, Pampilhosa da Serra e outros concelhos a dificuldade era acrescida.
Conseguimos no entanto para o local onde queria-mos colocar um carro tradicional, um carro de rodas com raios, de dois varais (de um boi ou vaca só), pagando por este um preço já elevado. Interessante foi o facto dos varais serem arqueados o que faz com que o animal possa ser de maior dimensão, até que pelo tamanho das rodas bastantes grandes, fazem supor um animal de porte.
Carro de junta com eixo de madeira, com rodas de 3 peças de madeira, nem pensar! Encontramos para o Distrito de Viseu alguns com rodas totalmente em ferro mas que desvirtuavam o inicial sentido do carro em plena concepção original.
Em algumas casas privadas, hotéis, casas de turismo, restaurantes, museus, espaços de cultura e centros religiosos ainda podem-se encontrar exemplares, apesar que em alguns destes espaços os carros encontram-se ao tempo, pelo que a sua degradação é extremamente rápida. Fácil é observar rodas soltas, bancos de jardim feitos de eixos e rodas, em jardins e moradias. Mas a maior parte porque ocupavam muito espaço fizeram-se em cavacas para lenha.
Passado alguns meses, falando com algumas pessoas nossas conhecidas e que sabem como gostamos de tradições e aspectos da nossa História Local e Regional, iniciamos mais alguns contactos para adquirir um carro de bois de junta. Iniciamos assim o trabalho de por cada aldeia do concelho tentar contactar alguém que pudesse saber de algum carro de bois de junta que quisesse vender, explicando mesmo os objectivos da compra, preservar apenas preservar um destes exemplares era o objectivo. Pedi ajuda ao senhor Alberto Santos (meu pai) conhecedor de vários locais e pessoas dando-me assim uma grande ajuda nesta nossa pretensão e, ... e este apareceu! Por nossa sorte um Poiarense que o tinha mandado fazer de encomenda, setuagenário de seu nome António. Sorte possivelmente terá tido o carro que não terá tido um fim adulterado ou em última análise queimado!
Dos objectos mais característicos das Beiras, temos Carros de Bois, de junta (com canga), de varais com um animal só, caso de boi, vaca, assim como de jumento, existindo também de 2 jumentos! As talhas de azeite, carroças de pi(e)trolinos ou azeiteiros, pias de pedra de azeite, Bidões em chapa para o azeite, as pipas do vinho, os arados e charruas com diversos tipos e formas, e tantos artefactos de outrora que caracterizam esta Beira de Portugal.

Pedro Santos

uma das lendas do primeiro rei de portugal

Já muito falamos e escrevemos sobre uma das Lendas mais caracteristicas de Poiares. E não deixou de ser polémico o facto de desde o século XIX defender-se que poderia ser de Poiares, este nosso, ou de outros locais como perto do Porto ou Vila da Feira. Por convicção que temos que tenha sido no espaço hoje de Vila Nova de Poiares, vamos contar a História da Lenda.
Nos séculos seguintes ao reinado do “Conquistador”, inúmeras lendas se contavam por várias terras por onde o conquistador passou! Feitos que enobreciam e vangloriavam o primeiro rei deste recém país “à beira mar plantado”!
Terá sido no período da edificação da Nação que foi surgindo o nome das “Terras de Poiares” – «Vimieira a par de Poiares». Nome que não sabemos quando se pronuncia pela primeira vez, mas que se relaciona de uma forma “apaixonada” e lendária com D. Afonso Henriques, através de uma lenda que como todas as lendas valem pelo que são, lendas.
Ao facto referem-se diversas Crónicas antigas, nomeadamente, as do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, as de Duarte Galvão, de Frei António Brandão ou de Nunes de Leão. Também relatos de historiadores e literatos do século XIX, como Alexandre Herculano ou Aquilino Ribeiro, incluíram nos seus trabalhos a Lenda referente a D. Afonso Henriques.
Apresentamos assim duas das versões da Lenda de D. Afonso Henriques, uma mais originária de 1600, outra do século XIX, ambas com adaptações realizadas por nós.


Extracto retirado e adaptado por nós do livro de Nunes de Leão do ano 1600, que se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo:

« ... prosseguindo mais a história diz, que queixando-se a Rainha ao Santo Padre, da Prisão em que seu filho a tinha metido (o que ele muito estranhou), mandou o Santo Padre a Portugal sobre dito ao Bispo de Coimbra, que na corte de Roma andava, com mandado para que El Rei soltasse logo sua mãe. E não querendo que fosse interdito todo o reino. E o Bispo assim cumpriu. E que dado as cartas a El Rei lhe disse que tinha o Papa de fazer com ele por ter presa a sua mãe que sofre certo que nem por mandato do Papa, nem outro algum a havia de soltar.
E o Bispo vendo que não podia levar a melhor resolveu excomungar El Rei e todo o Reino e se fora. Sabendo El Rei que estava excomungado ele e todo o reino, foi-se aos seus cónegos e mandando os entrar em cabido, que de entre eles elegessem um Bispo. E eles disseram-lhe que Bispo tinham, que não lhe podiam dar outro, e El Rei disse-lhes que nunca em seus dias esse seria Bispo e logo lançara os cónegos todos pela porta fora dizendo que ele buscaria um Bispo e vindo pelo claustro viu um clérigo negro e perguntou-lhe como se chamava, a que o negro lhe dissera, Martinho e perguntando-lhe pelo nome de seu pai dissera que era Soleima. Perguntando-lhe se era bom clérigo, o negro disse-lhe que era um dos melhores de Hespanha e El Rei disse-lhe: Tu serás Bispo Dom Soleima e ordeno logo que me digas missa. Disse-lhe o negro, que ele não era ordenado como Bispo, para lha dizer. E que El Rei lhe dissera que ele o ordenava como Bispo que lha podia dizer e se aparelha-se como logo lha dissesse e não que lhe cortaria a cabeça com aquela espada ao que o clérigo se retirara para lhe dizer a missa solenemente como Bispo e lha disse.
Diz mais essa história contra El Rei Dom Afonso Henriques que sabendo-se em Roma o que ele passara com o Bispo de Coimbra e que não quisera soltar a mãe, nem obedecera aos mandamentos do Papa e como elegera Bispo e o ordenara de sua autoridade julgarão El Rei por herege e ordenarão de lhe mandar um Cardeal que lhe ensinasse a fé e o emendasse de seus erros. E que vindo o Cardeal pelas cortes dos Reis fora recebido com muita honra. E sendo perto de Coimbra fora dito a El Rei per seus fidalgos: Senhor, ali vem um Cardeal de Roma a vós da parte do Papa, por estar descontente de vos, por o Bispo que fizeste. Disse El Rei que ainda se não arrependia e eles lhe lembrarão que todos Reis por cujas terras viera lhe fizeram muitas honras e cometerão a lhe beijar a mão. Ao que El Rei disse: Não sei eu Cardeal nem Papa que a Coimbra viesse, que estendesse a mão para eu lha beijar em minha casa, que eu lhe não cotarei o braço pelo cotovelo com esta espada. E que sabendo o Cardeal aquelas palavras em chegando a Coimbra tomou grande receio e El Rei não saio fora a recebe-lo: o que o Cardeal logo teue a mão final. E portanto como chegou logo se fora a alcançar onde El Rei pousava e que ai o recebera El Rei bem dizendo-lhe: Cardeal a que viestes a esta terra ... ou que riquezas me trazeis de Roma para estas guerras que tão a medo ... faço de dia e de noite contra os Mouros ... se por ventura trazeis alguma coisa que me deis, dai-me e se não a trazeis tornai-vos vosso caminho e o Cardeal lhe disse: Senhor eu sou vindo a vos da parte do Santo Padre para vos ensinardes a fé de Cristo que esta informado que a não sabeis. E que El Rei respondendo: Cerro assim temos nos que nos livros de fé como vos lá em Roma e por tanto bem sabemos os artigos da Santa fé. E todos lhe referiu por sua ordem e que aquela fé tinha e teria firmemente também como em Roma. Pelo que não tinha necessidade dele nem de sua doutrina, mas que lhe dariam então o que houvesse mister e que ou outro dia falariam.
Prosseguindo um pouco mais diz a historiografia que indo-se o Cardeal para a pousada mandou por logo ceada as bestas, e tanto que foi a meia noite mandou chamar todos os clérigos da cidade e excomungou a El Rei e a Cidade e ao Reino todo e cavalgou e foi-se de maneira que ante manhã tinha andado duas léguas. E que levantando-se El Rei pela manhã, dissera a seus fidalgos que com eles queria ir ver o Cardeal. E que dizendo lhe eles que ante manha se partira, deixando a ele e a todo reino excomungado, com grande indignação mandou a pressa selar um cavalo e cingiu sua espada, e foi tão rápido que alcançou ao Cardeal em um lugar que chamam a Vimieira a par de Poiares. E como chegou a ele lhe lançou uma mão ao cabeção e com outra tirou a espada e alçando-a disse: Da cá a cabeça traidor, querendo-lha cortar. Mas dizendo-lhe os fidalgos que chegarão com ele, que tal não fizesse, que o teriam em Roma por herege, El Rei lhes dissera: Vos outros lhe dais a cabeça toda vos ficara cá e que o Cardeal lhe pedira não lhe fizesse mal, que tudo o que aqui se faria de boa mente. E que ele Rei lhe dissera que o que queria era, que descomungasse quanto excomungara e que não levasse ouro nem prata, nem bestas, somente as que lhe bastassem e que lhe mandasse sua letra de Roma que nunca Portugal seria excomungado, que ele ganhara com sua espada. E que em vez disso deixasse um sobrinho que consigo trazia até que a letra viesse e que até quatro meses lha não mandasse que lhe cortaria a cabeça a seu sobrinho. O Cardeal disse que lhe aprazia. E ali ficou de o fazer. E que então lhe tomara El Rei quanta prata e ouro trazia e das bestas que lhe achou lhe deixou mais que três e lhe disse: Hora vos Cardeal ide vosso caminho, que esse e o serviço que vos quero. E sito acabado antes que o Cardeal se partisse El Rei se despiu todo, e lhe mostrou muitos sinais de feridas, que tinha pelo corpo e disse: Como eu sou herege se mostra por esses sinais de que houve estas em tal peleja e estas em tal cidade ou vila que tomei e todas por serviço de Deus contra os inimigos de nossa fé. E para levar isto adiante vos tomo este ouro e prata, de que estou muito em falta. O Cardeal diz que se tornar a Coimbra. E após ele diz que mandou El rei a Roma um seu escudeiro encoberto para dela lhe mandar dizer o que se dizia dele sobre o cardeal. O qual chegado primeiro que o Cardeal, escreveu a El Rei como contara o Bispo ao Papa tudo como passara, e como lhe ficara de lhe mandar a letra e o Papa se ano jara com ele dizendo-lhe que como prometia o que só podia fazer a fé Apostólica e que o Cardeal lhe dissera: Santo Padre, eu não digo letra, mas sim a cadeira de São Pedro fora minha lha deixara e dera de boa mente por escapar de suas mãos que se vos viseis sobre vos um cavaleiro tão forte e espantoso como aquele Rei e vos tivera a mão no cabeção e a outra alçada para vos cortar a cabeça, e seu cavalo não menos alvoraçado hora com uma mão, hora com outra cavando a terra, parece parecendo que vos fazia a cova, vos dareis a letra e o Papado. Por tanto me não deveis de culpar, então lhe outorgou o Papa a letra da maneira que o Cardeal quis e que o Cardeal lha mandou antes dos quatro meses. E El rei lhe mandou seu sobrinho honradamente como cumpria, dando-lhe muito do seu. E o cardeal foi da i em diante tão seu amigo, que todas as cousas lhe fazia na Corte de Roma, e acabava com o Papa per que El rei sempre em seu Reino fez os arcebispos e Bispos como quis. Estas são as histórias que entre a gente vulgar andarão naquele tempo, que todas dependem de uma que é o casamento da Rainha, e sua prisão, ... »[1]

Versão extraída da obra de Aquilino Ribeiro do século XIX, retirado de um apontamento histórico da autoria do Dr. Antonino Henriques. Adaptação nossa.


No Séc. XII o Papa Honório II, enviou um Cardeal – Legado devido à queixa que D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques, lhe fizera depois da batalha de São Mamede informando-o de que seu filho a mantinha presa, segundo um antigo costume.

Em Coimbra terá o rei questionado este mensageiro papal!
«- Então a que vindes, cardeal amigo? Trazeis-me dinheiro para custear a guerra que, noite e dia, ando há tantos anos a fazer aos mouros? Se trazeis, desatai a bolsa, se não, tratai de rodar e volver para onde viestes.
- Venho do mando do Santo Padre ensinar-vos a fé de Cristo ...
- Ensinar-me a mim a fé de Cristo ... ?!
- Então o credo que cá se usa não é o mesmo que em Roma ? Ouvide lá...
E D. Afonso Henriques, recitou-lhe tim-tim por tim-tim o símbolo dos apóstolos tal como vigorava por toda a cristandade.
- Hem ? Já sabeis que não estou em falso. Mas, bem, bem, ide repousar, que se faz tarde, e amanhã falaremos.
Recolhendo o cardeal à pousada, in-contenti mandou os arreios deitar ração de cevada às mulas e aprestar para partir. Meia noite dada, acudiram os clérigos à sua convocação, ensonados uns, cara de caso outros. E, perante todos eles, boquiabertos, excomungou a cidade e o reino. Isto feito, cavalgou, e ainda a manhã não fora, tinha botado mais de duas léguas de Coimbra.
Quando, ao levantar, D. Afonso Henriques o soube, pediu que lhe trouxessem o cavalo mais veloz. Foi-lhe nascer o sol, levado num furioso galope a corta mato, perto de Poiares. Um pouco mais adiante avistou o cardeal legado que choutava com a comitiva. E, correndo para ele, sem tirte nem guarte, deitou-lhe a mão esquerda ao cabeção, ao passo que com a direita desembainhava a espada:
- Espera traidor, que é hoje o teu último dia ! ...
Interpuseram-se os cavaleiros que o tinham seguido à carga cerrada :
- Não o mateis, senhor, que então é que vos tomam por herege verdadeiro !
- Seja, não o mato, mas há-de desfazer e já tudo quanto fez ...
- Senhor – gemeu o cardeal – tudo o que vós quiserdes eu o farei de boamente.
- Então desexcomungai quanto excomungastes ...
- Senhor, eu o desexcomungo em nome do Padre, do Filho e do Espirito Santo.
- Prantai para fora dos alforges quanto levais ... Prata, oiro, e mais coisas de valia ...
Os arrieiros esvaziaram os alforges que, de facto, iam a abarrotar de preciosidades.
- Deixai também as bestas, que preciso delas para a guerra. Bastam-vos três ...
Resignou-se o legado a cumprir mais esta condição, julgando que era a derradeira.
- Tomai agora o compromisso de que, mal chegardes a Roma, me enviareis um breve de Sua Santidade, breve em que se declare com todos os ff e rr que nunca mais em tempo algum eu e Portucal, que ganhei com esta espada, serão excomungados ...
Assumiu o cardeal, e Afonso Henriques fez saber qual a condição final, aceite aliás submissamente como as demais. O sobrinho do cardeal ficava em refém até chegar o breve de Roma. Se no prazo de quatro meses não viesse, então não havia nada a fazer, e cortava-lhe a cabeça.
El-Rei, depois, despiu o pelote[2], desafivelou a loriga[3] perante os olhos estupefactos do legado e dos cavaleiros. E mostrando o peito lanzudo coberto de cicatrizes e gilvazes, em voz cava, martelada, proferiu:
- Cardeal, fazei-me o favor de dizer a Sua Santidade que vos pus bem à vista a cartilha das minhas heresias ...
E um por um foi apontando os golpes e enunciando as cidades e vilas e lugares de peleja onde os tinha apanhado. E em voz patética concluiu:
- Todos estes lanhos e talhadas recebi na batalha contra os inimigos da nossa Santa Fé. Dizei ao Papa.
Tendo chegado a Roma, quis desautorizá-lo o Sumo Pontífice com recusar-lhe a Letra prometida a par das infalíveis censuras. Respondeu-lhe o Cardeal – Legado.
- Senhor Santo Padre, se vós vos víreis, nos assados em que eu me vi, um homenzarrão daqueles a agarrar-vos a cabeça com a mão esquerda, a espada na mão direita, o cavalo, grande como uma torre, a escavar a terra parecendo que vos estava a abrir a cova, ah, não daríeis apenas uma bula, mas a própria cadeira de São Pedro ... “.


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[1] Lenda do Livro de Duarte de Armas, com adaptação do autor. (Primeira Parte das Crónicas dos Reis de Portugal, Reformadas pelo Licenciado Duarte Nunes Leão, Desembargador da Casa da Suplicação, por mandato del Rei D. Filipe I de Portugal, da gloriosa memória. Lisboa, 1600)
[2] Tipo de vestuário com abas grandes.
[3] Tipo de saia de malha, geralmente usado por cavaleiros guerreiros, coberto de lâminas, tipo de escamas em ferro.